quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Virada nostálgica

Cá estamos nós, em 2016. Mais um ano que se inicia, mais uma página da nossa vida, pronta pra ser escrita, bla bla bla.

Quando eu era criança, todo ano, passava as festas de final de ano na casa da minha avó paterna, em Guaporé. Nunca chamei a vó de vó. Era a casa da Nona. Família italiana não tem vó, tem Nona!

A Nona ainda morava na mesma casa onde meu pai e os irmãos cresceram. O vô, o Nono, eu nunca cheguei a conhecer. Faleceu quando o pai ainda era bem novo. 

Desde que eu me conheço por gente, a Nona morava lá, com a tia Lila. Tia Lila viveu a vida toda com a Nona, nunca saiu de casa. E desde que eu me conheço por gente, feriadões de páscoa, natal e ano novo, a gente passava na casa da Nona. Eu, o pai, a mãe, o meu irmão. Tios, primos, vários raminhos da família, que eu não sabia ao certo qual era o grau de parentesco.


Essa, é a casa da Nona. Só o andar debaixo. Em cima morava outro raminho da família... mas as minhas lembranças de infância são todas no andar debaixo. 

Lembro que toda vez que íamos pra casa da Nona, a mãe tinha que colocar na mala uma caixa de band-aid, e um vidro de mercúrio (o precursor do merthiolate, na época em que ele ainda ardia... aquele vermelho/alaranjado, que deixava manchas na pele, no lugar dos raspões, arranhões e machucados). Na casa da Nona, eu brincava na calçada... que naquela época não tinha nem calçamento. Na casa da Nona eu SEMPRE ralava os joelhos, ralava os cotovelos, vivia cheia de roxos pelas pernas, que nem sabia de onde tinham vindo. 

Nos fundos da casa da Nona, tinha o banheiro, do lado de fora. Depois de um tempo e uma reforma, construíram outro banheiro lá dentro, também. Nos fundos da casa da Nona tem terra, tem plantas, tem horta. A gente catava ameixa e guabiju direto do pé. Cereja, pitanga, jabuticaba. Temperos... sálvia, alecrim, funcho, hortelã... aprendi qual era qual, o formato da folha, o cheiro, o gosto de cada um. 

Na rua onde fica a casa da Nona, eu corria, eu me sujava, eu sentava no chão, de pijama, de noite. Não tinha portão nem grade, eu pulava a janela da sala pra entrar e sair, pra não ter que dar a volta pelos fundos. Eu corria, e andava de bicicleta. E numa dessas, a roda da bicicleta derrapou nos cascalhos da rua, e eu caí. E passei o resto da semana com manchas de mercúrio nas palmas das mãos, e nos joelhos, onde tinha me ralado e cortado. Meus joelhos carregam até hoje as cicatrizes desse tombo. Em outro tombo, na mesma rua, na mesma bicicleta, a roda dessa vez ficou emperrada em um buraco, o impacto me jogou pra frente, caí por cima do braço direito. Fratura. 

A casa da Nona era o lugar onde a Eka criada em apartamento virava a Eka moleca. Lembro como se fosse hoje, da mesa farta nas ceias de natal, com todo mundo em volta. Mesa essa em que eu e minha prima nos escondíamos debaixo, pra roubar cerejas da decoração antes da hora do jantar. Como se ninguém estivesse vendo. Era secreto. Essa mesma mesa, amanhecia com cestas de chocolate no topo, nas manhãs de páscoa. Mas a Eka moleca já sacava tudo, e enquanto os primos mais novos dormiam acreditando que o coelhinho viria, levantava da cama de madrugada e trocava os bombons das cestas, separando pra si os seus favoritos, e deixando pros primos aquele maldito bombom de banana. Criança corrupta! hahah

Mas a Nona, a Nona nunca precisou de data especial pra manter a mesa farta. Não! Em seus tempos mais saudáveis, fazia questão de cozinhar tudo o que a gente gostava. E cozinhar MUITO! E muito, muito bem. Não há no mundo, comida como a comida da Nona. Era fartura do café da manhã ao jantar, com direito a petiscos nos intervalos. Na casa da Nona, eu acordava cedo. A casa acordava cedo. Também me lembro como se fosse hoje, de sentar na mesa da cozinha pra tomar um canecão de leite com nescau, pão caseiro, e chimias de todos os sabores, de todas as frutas. Queijos e salames coloniais, e manteiga feita em casa. Aliás, a Nona fazia chimias muito boas, também. Quando eu acordava, a nona e a tia Lila já estavam de pé, e o pai já tinha até saído pra buscar o jornal. E enquanto eu tomava meu café, as vezes a mãe aparecia na porta da cozinha, de camisola e com cara de sono, perguntando porque é que a gente levantava tão cedo. Se eu fechar meus olhos, posso ver a cena.

Depois que crescemos, cada um foi pro seu lado, e nunca mais passamos os feriados na casa da Nona. Visitávamos, sim. Cada vez mais esporadicamente. E a Nona me abraçava e chorava de saudades a cada visita. 
O tempo passou, a Nona adoeceu... acho que nunca contei aqui essa história. Contei? Não sei. Só sei que a Nona adoeceu, e durante algum tempo, não se sabia o que ela tinha. Até que quando se soube, era câncer. No colo do útero. Ela veio pra Caxias, morou lá em casa durante o tratamento, fazia radio e quimioterapia em Porto Alegre, o pai levava e trazia ela de lá todos os dias. A mãe cuidava da Nona como se fosse mãe dela mesma. Mas a nona, aquela mulher grande, forte e faladora, foi ficando fraquinha, emagrecendo. Como uma luzinha que se apaga aos pouquinhos. Ela se curou do câncer, sim. Mas estava fraquinha, e acabou falecendo pouco tempo depois. Faz cerca de 3 anos que isso aconteceu.

Tia Lila continua morando na casa onde o pai e os irmãos (meus tios) cresceram, agora sozinha. Depois que a Nona faleceu, aí sim que não teve mais festa. Passou um bom tempo, até que voltássemos pra lá. Acho que nos últimos 3 anos, eu fui pra lá uma única vez. Sem contar essa vez.

Passamos, eu e o pai, o finalzinho de 2015, a virada do ano, e os primeiros dias de 2016, na casa da Nona. Que agora é a casa da tia Lila. A cidade cresceu, a casa mudou. Agora tem portão, e grade nas janelas, não dá mais pra pular. Agora tem calçamento, e até movimento de carros na rua. Agora tem o quarto da Nona, com todas as coisas dela nos seus devidos lugares, porém vazio. E a mesa da sala de jantar, aquela que eu me escondia embaixo, esquecida no cômodo escuro. E os armários, cheios de louças que a tia Lila nem tem mais ocasião pra usar. E as paredes, com aquele ar de nostalgia, só de olhar. Esses dias me remeteram àqueles dias que se foram, e eu senti como se, a qualquer momento, a mãe fosse aparecer na porta da cozinha, de camisola, com cara de sono, perguntando porque é que a gente tinha levantado tão cedo. Como se a qualquer momento, eu fosse entrar na sala e ver a Nona sentada na sua poltrona favorita, fazendo crochê na borda de um pano de prato, vendo tv, ou tirando um cochilo. Ou então sentada na cozinha, do lado do fogão à lenha, cuidando uma panela.

A virada do ano foi de saudade e nostalgia. Mas foi longe de ser ruim. 

Não tem mais a Nona. Não tem mais a mãe. Não dá mais pra pular a janela da sala. Não tem mais a casa cheia, a mesa farta (ok, estava farta, proporcional para 3 pessoas... mas antes era comida pra mais de 10). Não tem mais necessidade de tomar banho no banheiro lá de fora, e entrar na casa enrolada na toalha. Não tem mais as chimias da Nona. Eu não ralo mais os meus joelhos nos degraus ásperos e irregulares da escada dos fundos, nem preciso mais dos band-aids ou do merthiolate como itens essenciais da mala. 

Mas tem a tia Lila, sempre tão carinhosa, no seu jeito simples de fazer um agrado. Tem o pé de ameixa, os pés de guabiju carregados, com as frutinhas ainda brotando. Tem a terra, a horta, e os temperos. Tem o alface, a couve, a salsinha. A sálvia, a cebolinha e o alecrim. Tem a jabuticabeira, com os frutos atacados pelos passarinhos. Tem os raminhos da família, que hora ou outra aparecem por lá pra tomar um chimarrão e jogar conversa fora. E tem aquele ar de saudade... esse, nunca vai embora.