quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

As férias, e a reflexão.

Oi, gente. Estou de férias né... e ando muito reflexiva nesses últimos tempos. Escrever é uma coisa que me faz colocar os pensamentos em ordem, tipo uma terapia. Eu escrevo, eu releio, eu penso sobre aquilo. Eu deixo salvo em uma pasta perdida no computador, e esqueço. Aí um belo dia, encontro de novo, leio mais uma vez, e vejo tudo de outra perspectiva. Ou não... as vezes só dou uma cutucada nas velhas feridas mesmo. Sabe quando a gente tem um machucado sangrando, e quando ele finalmente começa a querer curar a gente vai lá e arranca a casquinha? É uma boa metáfora. 
Bom, nem tudo que eu escrevo vem parar no blog, e não é como se fosse um diário, são só pensamentos. Pois bem, mas acredito que por esses dias vocês vão acabar me vendo com uma frequência maior por aqui. Eu acho. 

O último ano foi complicado, né? Cheio de extremos e coisas inesperadas, altos e baixos... mas acho que isso é o que dá emoção pra vida, sei lá, faz a gente se sentir vivo. O objetivo desse post não é fazer um balanço de como foi o ano nem nada, nem passar uma mensagem bonitinha de superação e desejos para o próximo ano. Não é isso. Aliás eu não estou com cabeça nenhuma pra fazer isso, porque na real eu preciso é organizar a minha vida.

Esse ano eu vivi pra universidade, e isso não é de todo ruim... tirando o fato de que eu esqueci de mim mesma. Me larguei totalmente. Antes, eu vinha numa fase bem legal de amor próprio e cuidado comigo mesma. Auto-estima estava legal, eu tava conseguindo ser um pouco independente, tava prestando atenção em mim, indo pra academia todo dia, feliz, endorfinas e etc... feliz em me olhar no espelho, em usar uma roupa nova, ajeitar o cabelo, usar uma maquiagem diferente... 

Daí veio a reviravolta na vida. Me adaptar em uma cidade diferente foi ok... eu conheço pouca coisa da cidade, visto que minha rotina se baseia em ir de casa pra universidade e vice versa, todos os dias. No máximo uma caminhada pelo bairro, uma ida até o centro, umas voltas na redenção e olhe lá. 

Me adaptar em uma casa que não é a minha, em uma cama improvisada que não é a minha, consciente de que aquele espaço é emprestado e não me pertence, não foi tão ok. Passei o ano me anulando de todas as formas para não incomodar. Sem reclamar. Sem fazer barulho. "Foca no que tu veio fazer aqui". "Ignora o barulho e te concentra, faz as tuas coisas". "O principal aqui é estudar, não fica de mimimi!". "Não esquece que tem que ir no mercado, tem que lavar a roupa, tem que tirar a roupa seca da corda e guardar, tem que fazer comida pra amanhã, não deixa nada sujo na cozinha. Tem que recarregar o vale transporte, tem que sacar o dinheiro das contas desse mês, tem que manter tudo organizado, tu não pode ser um empecilho aqui, tu não tem pra onde ir". Isso em meio à pressão psicológica das milhões de provas, e trabalhos, e de tentar ser suficientemente boa o bastante para não repetir matérias na universidade, pra não ter que alongar ainda mais a minha estadia.

Não é como se eu não tivesse que ter responsabilidades também, se morasse sozinha. Ou se pelo menos dividisse o aluguel, tivesse um quarto, uma porta pra fechar e poder ficar sozinha de vez em quando. Eu ainda teria que ter todas essas ~responsabilidades de adulto~, porque elas fazem parte da minha vida, agora. Mas não é isso que me incomoda. Não é o cansaço de ter coisas pra fazer. É a constante sensação de que eu estou sendo um empecilho, sabe? De que nada daquilo me pertence, e eu só preciso abaixar a cabeça e aprender a conviver, mesmo que algo me desagrade.Também não é como se eu fosse mal agradecida, e estivesse reclamando. Eu sou grata por poder usufruir de algum espaço, e por causa disso ter a possibilidade de seguir estudando. 

O fato é que ao longo do ano, toda aquela onda de amor próprio e cuidado comigo mesma... desapareceu. Seja pelo motivo que for... sumiu. Como agora eu vivo de bolsa, e a grana é beeeeeeeeem limitada, desisti de procurar uma academia. E passei a me alimentar super mal, também. Seja pela preguiça + falta de habilidade de cozinhar algo mais elaborado todos os dias... seja pela grana curta, que só deixa comprar o essencial no supermercado. Digamos que esse ano eu comi mais miojos do que nos últimos 5. E pizzas congeladas. Várias. Não preciso nem dizer que engordei, né? Mas foda-se... é só usar roupas mais largas. "Foca no que tu veio fazer aqui, vai estudar. O resto não importa."

Desisti de manter o meu cabelo bonito. Ele era enorme, mas estava um bagaço. Cortei na altura do ombro. Preciso dizer... eu gostei. Dá muito menos trabalho! E aproveitei pra doar o pedação que saiu, pro hospital da criança, na Santa Casa. Eles fazem perucas com os cabelos doados!


 Mas daí eu desisti de pintar, também. E ele foi ficando cada vez mais opaco e desbotado. E a raiz, crescendo e deixando aparecer vários fios brancos que até não muito tempo, não existiam. "Isso não importa também. O que importa é que tu tem 5 provas essa semana, e precisa estudar". 

Ganhei olheiras, que foram ficando gradativamente mais escurecidas, pela falta de sono de qualidade. Ah, eu dormi... dormi bastante. Dormi encolhida na poltrona, quando estava com dor de cabeça demais pra continuar estudando. Dormi incontáveis cochilos nos sofás do DCE, na universidade, com as luzes acesas e uma galera conversando, jogando sinuca ou tocando violão em volta. Não me admira que eu estivesse sempre com dores terríveis nas costas. Não me admira que eu vivesse com sono. Sempre exausta, sempre cansada. Meus olhos, antes tão grandes e expressivos, estavam inchados e sempre semicerrados. As dores de cabeça... essas me acompanharam por vários dias. Sem falar nas crises de rinite alérgica. 

Maquiagem? Isso existe? Eu que não ia perder 10 minutos a mais de sono pra levantar mais cedo e me maquiar. Como eu ia maquiar meus olhos, se eles mal ficavam abertos, e eu passava o dia esfregando eles? Vou te contar como eu andava me arrumando: 15 minutos antes do horário que o meu ônibus passava, eu levantava. Colocava uma roupa qualquer. Espelho? Não... não tem espelho. Eu me olhava no reflexo da tela da televisão... as vezes. Ok, tem o espelho do banheiro, só de rosto. Lá eu escovava os dentes correndo, dava uma olhada na minha cara e, no máximo, prendia o cabelo com um elástico, se estivesse muito calor, ou se o cabelo estivesse muito bagunçado. Só isso. Pegava a mochila e saía correndo. 

E essa é a minha cara de "felicidade", na ultima semana do semestre.


Mas agora estou de férias. "Ah... férias. Agora tudo será diferente!"

Como vocês sabem (eu acho), voltei pra casa, em Caxias. Fazem mais ou menos 3 semanas que estou de férias. E, cara... como é estranho ter tempo pro ócio! Como é estranho ter tempo pra futilidade! Como é estranho ter tempo pra... cuidar de mim. Eu ainda sei fazer isso? Ainda sei cuidar de mim?
Me "aventurei" nas minhas maquiagens. Redescobri elas. Na verdade, estou redescobrindo aos poucos. Nessas semanas que estou de férias, eu já cortei mais um pedaço do meu cabelo. E pintei. E retoquei/matizei a mecha descolorida. Fiz pés e mãos. Esmaltes? Meu deus, eu tenho uma caixa de esmaltes! Quando foi a ultima fez que eu fiz as unhas? E as sobrancelhas? E o buço? Fiquei apavorada. Vi outro rosto no espelho diante de mim... um rosto com o qual eu não estava mais acostumada, do qual eu havia me esquecido.


Saí sozinha, fui no cinema, comprei livros, e li pelo simples prazer de ler... sem nenhuma obrigação. Assisti séries, temporadas em sequência... sem me sentir culpada porque eu deveria estar fazendo alguma outra coisa em vez disso. Dei uma volta, comprei batons novos! E umas roupinhas! Fui no oftalmologista, e descobri que minha miopia aumentou 1 grau. Fui fazer lentes novas pros meus óculos, inclusive pros óculos escuros. Encontrei amigas! Saí! Fui a um show, fui pra pizzaria, pro xis... não pela comida, mas pela companhia. Pelas horas de conversa cara a cara. Pelas histórias. Pelas risadas. A quanto tempo eu não fazia isso? Quando foi a ultima vez que eu saí?

Esvaziei meu guarda-roupas, e enchi três sacos ENORMES de roupas pra doação. Roupas que eu simplesmente não usava mais, ou que ficaram pequenas, ou que eu tinha guardadas desde os meus 14 anos pelo simples apego. Ainda preciso fazer o mesmo com os calçados. Acho que foi uma espécie de "preparação"... uma hora eu vou ter que mexer nas coisas da mãe. E separar. E ver com o que eu quero ficar. E levar o restante pra doação. Ainda não me sinto preparada pra isso... mas uma hora eu vou fazer. E vai ser antes de as férias terminarem.


Estou sem perspectivas pra 2016. Eu sei que vou voltar pra Porto Alegre. Eu sei que vou voltar pra UFCSPA. Eu sei que vou voltar pra rotina trabalhosa e cansativa. Só não posso deixar ela me engolir. Nem quero voltar a me anular. 
Preciso arrumar uma maneira. Preciso de mais dinheiro. Preciso dar um jeito de morar em outro lugar. De ter um pouco mais de liberdade. De privacidade. Preciso ter a liberdade de deixar uma baguncinha pra lá quando não estiver afim de arrumar. De almoçar fora quando não estiver com saco de cozinhar as 10hs da noite, pra levar marmita no dia seguinte. 
Preciso ter um tempo pra mim e FOR THE LOVE OF GOD....... preciso levantar essa bunda gorda e por ela pra fazer exercícios. Lembra do prazer que era aquela bomba de endorfina depois de uma aula de spinning, Valeska? Lembra como aquilo era gostoso? A quanto tempo tu não sente isso? Não tá legal esse sedentarismo. Não tá legal essa rotina, em que o ponto alto do dia é se encostar num sofá qualquer pra conseguir dar um cochilo. Não tá legal. Quero voltar pra universidade. sim. Mas não quero voltar pra essa rotina na qual não existe EU.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

O dia em que mamãe virou uma estrela

Não sei como começar a escrever esse post. Venho enrolando e evitando e procrastinando, deixando pra depois, esperando o meu coração se acalmar. Mas hoje, eu estou reflexiva. Hoje eu li o livro da Ana, e ele me fez refletir sobre muita coisa, sobre a minha vida, a minha família, sobre coisas de anos atrás, coisas que passaram e não voltam mais, mas que estão vivas na minha memória como se fossem hoje. O livro da Ana me ajudou a trazer essas memórias de volta pra superfície, e acho que agora é a hora de escrever.

Minha mãe é um ser humano especial. Iluminado. Saiu da cidade do interior em que morava, buscando alguma perspectiva em Porto Alegre. Tinha dois empregos, estudava à noite, e batalhava pra ter a vida que queria. Morava em um pensionato, e um dia, teve todos os seus pertences roubados. Ela conheceu meu pai, eles dividiram apartamento, ela engravidou, eles casaram, meu irmão nasceu. E um tempo depois, eles se mudaram pra Caxias do Sul, onde, 9 anos depois, eu nasci.

Minha mãe abdicou dos empregos, abdicou do estudo e possivelmente de uma universidade, pra se dedicar à mim e ao meu irmão, enquanto meu pai trabalhava feito um louco pra sustentar a todos nós. Ela fazia tudo com carinho. Não sei se eu seria capaz de fazer o mesmo. Mas o fato é que, durante toda a minha infância, sempre que eu precisei, ela estava ali. Nós fomos amigas, fomos companheiras. Passamos por muita coisa juntas, como cúmplices. Passávamos madrugadas jogando canastra. Madrugadas fazendo docinhos e salgadinhos para as festas de aniversário. 

Ela se envolveu tanto na escola em que eu estudava, que passou a fazer parte dela. Organizou um mutirão de pais para fazer a pintura da escola, durante as férias, e eu ia junto pintar as grades e paredes. Organizou festas, sorteios, rifas, fez todas as campanhas que pode para arrecadar brindes e conseguir verba para melhorar a escola, melhorar aquele ambiente que ajudaria a me construir como cidadã. Até cozinheira da escola ela foi, em um tempo que a merendeira estava de licença. Pegou tanto gosto pela coisa, que resolveu voltar a estudar, e fazer magistério. E lecionar, nessa mesma escola.

A mãe sempre teve esse dom de fazer as coisas acontecerem, de dar um jeito pra que tudo funcionasse, pra que os problemas fossem resolvidos. Sempre com um sorriso no rosto. Ela sempre tinha a solução pra tudo. Ela foi o refúgio de muita gente, gente que eu nem sequer conheço, mas que guarda um carinho imenso por ela.

De uns tempos pra cá, a mãe estava doente. Ela não ficou doente do nada, foi uma condição progressiva, desencadeada por anos de tabagismo, má alimentação e falta de atividade física. Não era a própria saúde que ela priorizava na vida. Ela priorizava os outros, nós, em vez de ela mesma. Por conta disso, acabou num quadro de diabetes, hipertensão e obesidade, com entupimento de coronárias. Se obrigou a parar de fumar, por ordens médicas, e a princípio, estava se tratando apenas com medicamentos. Mais adiante, precisou insulina e stents no coração. 

Veio um tempo em que o mínimo esforço físico a deixava exausta, a visão estava comprometida, e ela sentia muita dor. Os médicos recomendaram que ela, além de tomar os medicamentos, perder peso e cuidar da alimentação, fizesse uma cirurgia de pontes de safena, que serve para revascularizar o miocárdio, criar um caminho alternativo para que o sangue possa fluir e nutrir os tecidos do coração. E a decisão foi tomada, ela faria a cirurgia.

Entrou na fila do SUS, onde esperou meses até que conseguisse realizar o procedimento. Nesse meio tempo, eu saí de casa, e toda a história da federal que você já sabe. Ficaram só ela e o meu pai aqui. E o pai cuidou dela como ninguém, apesar das constantes reclamações dela. Isso porque ele a acordava para que tomasse a medicação no horário correto, comprava comidas "sem gosto", que ela poderia comer, e vivia superprotetor e preocupado com a saúde dela, mais do que ela mesma.

Ela transmitia segurança, paz e tranquilidade sobre o seu estado. Sabíamos que aquilo estava acabando com ela, o excesso de medicação, a dificuldade para enxergar, o constante cansaço, as picadas na barriga antes das refeições... eu via que ela estava cada vez mais apagadinha, mas toda vez que eu voltava pra casa, ela sorria um sorriso lindo, apesar do olhinho triste, e me abraçava como só ela sabia fazer.

O dia da cirurgia finalmente chegou, e estávamos cheios de esperanças de que agora ela voltaria a ter uma vida digna, conseguiria fazer atividade física, o coração voltaria a funcionar como deve, ela seria ativa de novo. Conseguiria sair de casa sem medo de passar mal na rua. Conseguiria fazer as coisas que sempre gostou de fazer, e não conseguia mais. Ela foi internada na quinta-feira, e nesse mesmo dia eu cheguei em Caxias e fui imediatamente para o hospital para vê-la. E vejam vocês, eu esqueci do documento em casa, e não me deixaram passar da recepção do hospital. Eu não via minha mãe havia quase um mês. Fiquei frustrada, não daria tempo de voltar pra casa, buscar o documento e então retornar ao hospital, os horários de visita já teriam encerrado. Engoli a frustração, fui pra casa, e telefonei pra ela. Disse que tinha ido até lá, e não tinham me deixado vê-la. Ela já sabia, claro, afinal meu pai e irmão (com seus respectivos documentos) subiram até o quarto, conversaram com ela, e falaram que eu estava lá embaixo na recepção, e que não me deixaram subir. 

A cirurgia seria só no dia seguinte, à tarde, então eu fui pra casa, tomei um banho e dormi, e assim que amanheceu, peguei meu documento e fui pro hospital com meu irmão pra ficar com ela. O pai já estava lá. 

Ela estava tranquila, conversando conosco, falando besteira e rindo como sempre. Fazendo piada com a enfermeira. Me contou que no dia anterior, quando a enfermeira a levou na cadeira de rodas para fazer alguns exames, correu com ela pelo corredor do hospital, que estava vazio, e que ela tinha achado aquilo muito divertido. Conversamos, esperamos, ela deitou com a cabeça para o lado dos pés da cama, entediada, não queria mais esperar. Perguntava porque não vinham buscar ela logo, levar para o bloco de uma vez. Até que ela pegou no sono. Esperamos. Até que uma outra enfermeira veio buscá-la. 

Acompanhamos elas até a entrada do bloco cirúrgico, meu irmão foi dar um beijo nela e desejar boa sorte. Na porta, eu estava logo atrás dela, então ela disse: "E a Eka, não vai vir me dar um beijo?" - Bem eu estava logo atrás dela, indo fazer isso mesmo, respondi: "Tô aqui!", e dei um beijo na cabeça dela. Ela foi levada pra dentro do bloco cirúrgico, e nós nos sentamos nas cadeiras, no corredor, esperando.

A cirurgia durou o que, 4? 5? 6 horas? Não me lembro mais. Lembro que eu estava tranquila, ia dar tudo certo, e ela ficaria bem. Estava cheia de esperanças. Estava confiante. Ela me transmitiu essa confiança. Passei o tempo todo lendo um livro aleatório na sala de espera, para me distrair. Meu pai e meu irmão não liam nada, não faziam nada, apenas esperavam. Até que os médicos passaram com ela em uma maca, em direção à UTI, e o cirurgião nos chamou para conversar conosco.

"A cirurgia ocorreu conforme o esperado", ele nos disse. "A cirurgia tem passos que devem ser seguidos em uma certa ordem, como um trem andando nos trilhos, e em nenhum momento o trem saiu fora dos trilhos, tudo ocorreu como deve ser." Essas foram as palavras dele. E continuou... "daqui pra frente, a recuperação só depende do organismo dela, o coração dela estava bem comprometido e nós fizemos tudo da melhor forma que era possível. Agora ela vai ficar assistida aqui na UTI, e quanto mais as horas forem passando, melhor será o prognóstico." - Ela ainda estava sedada, e assim permaneceria.

Pudemos vê-la na UTI. Meu pai entrou, depois eu. Meu irmão não teve coragem. Ela estava entubada, cheia de fios, e com edema generalizado. Não sei explicar o que eu senti ao vê-la naquelas condições. Não parecia a minha mãe, a mulher forte e alegre e risonha de sempre. Era um ser frágil, lutando pra sobreviver. Respirando por um tubo. Eu perguntei pra médica/enfermeira, sei lá, pra pessoa que estava cuidando dela na UTI, se iriam retirar aquele tubo dela quando ela acordasse. Aquele aparelho me assustava. Fazia o peito dela subir e descer mecanicamente, inflando como um balão. A moça disse que a ideia era essa, tirar ela do respirador assim que possível. Fiz um carinho nela e não consegui mais ficar lá dentro. 

Saindo da UTI, fomos orientados a ir pra casa. Nos passaram os horários de visita, garantiram que ela teria toda a assistência, e que entrariam em contato conosco para qualquer eventualidade. Fomos pra casa.

Só deu tempo de tomar um banho e comer alguma coisa. Ligaram do hospital, avisando que o quadro dela havia piorado, e que deveríamos ir pra lá imediatamente. Meu pai entrou em desespero, e eu tirei de dentro de mim uma força que eu não faço a minima ideia de onde veio. Disse pra ele parar de chorar, parar de ser pessimista, que ela ia ficar bem. Eu me recusava a acreditar em qualquer pensamento negativo. Eu me recusava a chorar. E fiz meu pai engolir o choro também. Liguei pro meu irmão, avisei pra ele ir pro hospital também, pegamos o carro, e não sei como é que chegamos lá. Passamos direto, fomos conduzidos por uma enfermeira que, enquanto nos levava até o local onde a mãe estava, nos atualizava da situação. A mãe teve uma sequência de paradas cardíacas, e os médicos a haviam reanimado diversas vezes. E era isso que eles estavam fazendo quando chegamos à porta da sala. Não pudemos entrar, obviamente. Eles a reanimaram inúmeras vezes, e o coração dela voltava, e parava. Voltava, e parava. Até que não voltou mais. 

Meu mundo caiu, e eu fiquei apática. Não consegui chorar, não consegui falar nada, apenas ficar ali, existindo naquele momento. Sentei no chão do corredor do hospital, encolhi as pernas e fiquei encarando os meus joelhos por não sei quanto tempo. Ouvia meu pai chorar e não sabia o que fazer. Ouvia ele telefonar desesperado para todas as pessoas que conseguiu lembrar, em busca de alguma resposta, algum suporte, não sei. Eu fiquei um bom tempo encarando os meus joelhos, até que não consegui mais ficar parada. Levantei, e comecei a andar de um lado pro outro, até o fim do corredor, e voltava, e ia de novo, e voltava, ainda sem conseguir chorar. Não sabia o que pensar, não sabia como agir, não sabia de mais nada! Eu não estava preparada para aquilo, ia dar tudo certo, não ia? A mãe ia ficar bem, não ia?

Encontrei uma porta aberta, e pedi pra enfermeira que estava lá se ela conseguia pra mim um copo d'água. Tomei. Os médicos deixaram a gente entrar na sala em que a mãe estava. Ela estava com a mesma aparência de quando eu a vi mais cedo, na UTI. Tinha permanecido sedada, até então. Dei um beijo na testa dela, fiz um carinho, e só consegui pensar: "Vai em paz, mãe... a gente vai ficar bem."

Quando eu saí de dentro do hospital, vi o céu, as estrelas, e aquele vento gelado batendo na minha cara, eu desabei. E chorei tudo que não tinha chorado até então. Eu não consegui me envolver na burocracia que veio depois disso, não consegui fazer mais nada, apenas acompanhei a minha família no processo, apática e sem ação. Lembro que fomos até uma funerária, onde eu sentei em uma poltrona distante e deixei que todos resolvessem coisas nas quais eu não queria me envolver. Depois fomos pra casa. Já era umas 2h da manhã. O pai me pediu ajuda para escolher uma roupa bonita, que ela gostasse. Abri o guarda-roupas, tirei algumas peças, combinei uma blusa, uma calça... peguei um porta-retrato com uma foto onde estávamos nós 4, pai, mãe, irmão e eu. Levei comigo no carro. Voltamos pra funerária. Voltamos pra casa. Ninguém dormiu. Ainda de madrugada, fomos até a capela onde o pessoal da funerária havia organizado o velório, e lá eu permaneci por horas. 

Durante várias horas, ficamos apenas nós naquela capela. E aí conversamos, e aí refletimos. E eu percebi que seria egoísmo demais da minha parte, querer que minha mãe continuasse viva naquele corpo doente e limitado, só pra querer ela perto de mim. Eu só queria que ela ficasse aqui comigo, se fosse pra ela estar saudável, ativa, feliz, sem dor, sem problemas. E agora ela estaria assim, estaria livre de todos aqueles problemas. E se pra isso eu tivesse que aprender a lidar com a ausência dela, era isso que eu faria. 

Eu e minha família nos unimos mais do que nunca naquele dia. Quando finalmente amanheceu, as pessoas começaram a chegar. Tanta gente, gente que eu nem conhecia. Vou colar aqui uma coisa que escrevi no meu facebook, depois que tudo acabou, sobre como eu me senti: 

"Obrigada a todas as pessoas lindas que tornaram esse dia suportável. Obrigada pelo carinho. Obrigada por fazerem cada um de nós se sentir muito amado e especial, e por ajudarem a tornar tudo lindo, dentro do possível.
Família que ri e chora unida, permanece unida! Ficaremos bem.
Eu me senti tão amada ontem gente. Tão amada! Eu vi amigas de todas as fases da minha vida, reunidas a minha volta, todas juntas ali comigo. Amigas que eu não via anos! Que saudade! No meio desse buraco de dor sem tamanho, em uma fagulha lá dentro eu me senti tão feliz por ter vocês! Me senti acolhida por cada abraço! E achei tão lindo que no meio de tantas e tantas lágrimas, no meio da exaustão de quase 40 horas sem dormir, conseguimos rir e falar besteira, como sempre fui, como era com a minha mãe. Se tem uma coisa que eu aprendi com ela nessa vida, é a levar a vida com bom humor. Mesmo quando parece impossível! É uma característica que já ouvi falarem que eu tenho, e que veio muito dela. Sempre sorridente. See the bright side. Always.
A saudade que sentimos é só mais uma prova do quanto a minha mãe foi um ser humano especial, que contagiava todas as pessoas que tiveram o prazer de conhecê-la, com palavras de carinho, com afeto. O coração físico pode até ter sido frágil, mas o espiritual era/é maravilhoso, enorme, gentil e solidário. Eu tenho muita sorte de ter convivido ao lado dela toda minha vida. Aprendi muito! Agora é hora de andar com as próprias pernas, mas eu sei que ela vai estar sempre olhando por mim. Mãe, eu ainda vou te dar muito orgulho! Te amo."


Achei irônico, vinha fazendo uns dias bem bonitos, de sol, e nesse dia choveu. Como se o céu também chorasse. Mas no fim do dia, o tempo abriu e o sol voltou. É meio poético, né? Como o mundo pode ser... é só saber observar.

Passei toda a semana seguinte em Caxias, com a minha família. Não fui pra aula. Não perdi nada importante. Mas na semana seguinte, tive que retornar pra Porto Alegre, o semestre estava no fim, e eu não podia abandonar tudo agora. E isso sem dúvida não daria orgulho nenhum pra minha mãe, que sempre se orgulhou dos meus estudos. 

Passando um mês, publiquei o seguinte:


"Mãezinha linda, hoje faz um mês que tu partiu. Hoje a saudade tá batendo ainda mais forte. Mas eu quero que tu saiba que, de todo coração, eu espero que onde quer que tu esteja, estejas feliz. E saiba que a gente te ama muito e não espera outra coisa pra ti. É difícil conviver com a tua ausência, é difícil chegar em casa e não ser recebida pelo teu abraço, pelo teu olhar carinhoso e pelo teu sorriso, que sempre irradiava tanto amor quando me via. Mas estou certa de que tu vai guiar os meus passos, e vai me contagiar com teu amor de mãe por toda minha vida. E sempre que eu der uma risada gostosa, vou lembrar da tua, e de como tu ia rir também se eu te contasse. E sempre que eu me sentir triste, vou lembrar do teu abraço, e de como ele tinha o poder de tirar todas as mágoas de dentro de mim. E sempre que eu estiver em dúvida, vou pensar no que tu me diria. E sempre que eu estiver com saudades de ti, vou pensar em ti com todo meu amor, pra que daí tu receba um pouco dessa energia positiva que vem de mim. Eu não fico triste ao lembrar de ti não, eu fico feliz por ter tido a oportunidade de conviver com uma pessoa tão incrível, por ter tantas memórias boas e alegres. Eu vou ficar cada vez mais forte, tu vai ver só. Amo tu, tá?"

Voltei pra Porto Alegre, estudei como uma monstra, vindo pra Caxias todos os fins de semana ficar com meu pai. Fui aprovada sem exame em todas as disciplinas, às custas de várias madrugadas em claro, e umas olheiras. Mas finalmente estou de férias. E voltei pra Caxias, onde ficarei até o ano letivo recomeçar, e eu conseguir pensar no que é que vou fazer. Não vou abandonar a faculdade, isso não é uma opção. Eu só preciso de mais força do que nunca pra seguir em frente.