terça-feira, 15 de dezembro de 2015

O dia em que mamãe virou uma estrela

Não sei como começar a escrever esse post. Venho enrolando e evitando e procrastinando, deixando pra depois, esperando o meu coração se acalmar. Mas hoje, eu estou reflexiva. Hoje eu li o livro da Ana, e ele me fez refletir sobre muita coisa, sobre a minha vida, a minha família, sobre coisas de anos atrás, coisas que passaram e não voltam mais, mas que estão vivas na minha memória como se fossem hoje. O livro da Ana me ajudou a trazer essas memórias de volta pra superfície, e acho que agora é a hora de escrever.

Minha mãe é um ser humano especial. Iluminado. Saiu da cidade do interior em que morava, buscando alguma perspectiva em Porto Alegre. Tinha dois empregos, estudava à noite, e batalhava pra ter a vida que queria. Morava em um pensionato, e um dia, teve todos os seus pertences roubados. Ela conheceu meu pai, eles dividiram apartamento, ela engravidou, eles casaram, meu irmão nasceu. E um tempo depois, eles se mudaram pra Caxias do Sul, onde, 9 anos depois, eu nasci.

Minha mãe abdicou dos empregos, abdicou do estudo e possivelmente de uma universidade, pra se dedicar à mim e ao meu irmão, enquanto meu pai trabalhava feito um louco pra sustentar a todos nós. Ela fazia tudo com carinho. Não sei se eu seria capaz de fazer o mesmo. Mas o fato é que, durante toda a minha infância, sempre que eu precisei, ela estava ali. Nós fomos amigas, fomos companheiras. Passamos por muita coisa juntas, como cúmplices. Passávamos madrugadas jogando canastra. Madrugadas fazendo docinhos e salgadinhos para as festas de aniversário. 

Ela se envolveu tanto na escola em que eu estudava, que passou a fazer parte dela. Organizou um mutirão de pais para fazer a pintura da escola, durante as férias, e eu ia junto pintar as grades e paredes. Organizou festas, sorteios, rifas, fez todas as campanhas que pode para arrecadar brindes e conseguir verba para melhorar a escola, melhorar aquele ambiente que ajudaria a me construir como cidadã. Até cozinheira da escola ela foi, em um tempo que a merendeira estava de licença. Pegou tanto gosto pela coisa, que resolveu voltar a estudar, e fazer magistério. E lecionar, nessa mesma escola.

A mãe sempre teve esse dom de fazer as coisas acontecerem, de dar um jeito pra que tudo funcionasse, pra que os problemas fossem resolvidos. Sempre com um sorriso no rosto. Ela sempre tinha a solução pra tudo. Ela foi o refúgio de muita gente, gente que eu nem sequer conheço, mas que guarda um carinho imenso por ela.

De uns tempos pra cá, a mãe estava doente. Ela não ficou doente do nada, foi uma condição progressiva, desencadeada por anos de tabagismo, má alimentação e falta de atividade física. Não era a própria saúde que ela priorizava na vida. Ela priorizava os outros, nós, em vez de ela mesma. Por conta disso, acabou num quadro de diabetes, hipertensão e obesidade, com entupimento de coronárias. Se obrigou a parar de fumar, por ordens médicas, e a princípio, estava se tratando apenas com medicamentos. Mais adiante, precisou insulina e stents no coração. 

Veio um tempo em que o mínimo esforço físico a deixava exausta, a visão estava comprometida, e ela sentia muita dor. Os médicos recomendaram que ela, além de tomar os medicamentos, perder peso e cuidar da alimentação, fizesse uma cirurgia de pontes de safena, que serve para revascularizar o miocárdio, criar um caminho alternativo para que o sangue possa fluir e nutrir os tecidos do coração. E a decisão foi tomada, ela faria a cirurgia.

Entrou na fila do SUS, onde esperou meses até que conseguisse realizar o procedimento. Nesse meio tempo, eu saí de casa, e toda a história da federal que você já sabe. Ficaram só ela e o meu pai aqui. E o pai cuidou dela como ninguém, apesar das constantes reclamações dela. Isso porque ele a acordava para que tomasse a medicação no horário correto, comprava comidas "sem gosto", que ela poderia comer, e vivia superprotetor e preocupado com a saúde dela, mais do que ela mesma.

Ela transmitia segurança, paz e tranquilidade sobre o seu estado. Sabíamos que aquilo estava acabando com ela, o excesso de medicação, a dificuldade para enxergar, o constante cansaço, as picadas na barriga antes das refeições... eu via que ela estava cada vez mais apagadinha, mas toda vez que eu voltava pra casa, ela sorria um sorriso lindo, apesar do olhinho triste, e me abraçava como só ela sabia fazer.

O dia da cirurgia finalmente chegou, e estávamos cheios de esperanças de que agora ela voltaria a ter uma vida digna, conseguiria fazer atividade física, o coração voltaria a funcionar como deve, ela seria ativa de novo. Conseguiria sair de casa sem medo de passar mal na rua. Conseguiria fazer as coisas que sempre gostou de fazer, e não conseguia mais. Ela foi internada na quinta-feira, e nesse mesmo dia eu cheguei em Caxias e fui imediatamente para o hospital para vê-la. E vejam vocês, eu esqueci do documento em casa, e não me deixaram passar da recepção do hospital. Eu não via minha mãe havia quase um mês. Fiquei frustrada, não daria tempo de voltar pra casa, buscar o documento e então retornar ao hospital, os horários de visita já teriam encerrado. Engoli a frustração, fui pra casa, e telefonei pra ela. Disse que tinha ido até lá, e não tinham me deixado vê-la. Ela já sabia, claro, afinal meu pai e irmão (com seus respectivos documentos) subiram até o quarto, conversaram com ela, e falaram que eu estava lá embaixo na recepção, e que não me deixaram subir. 

A cirurgia seria só no dia seguinte, à tarde, então eu fui pra casa, tomei um banho e dormi, e assim que amanheceu, peguei meu documento e fui pro hospital com meu irmão pra ficar com ela. O pai já estava lá. 

Ela estava tranquila, conversando conosco, falando besteira e rindo como sempre. Fazendo piada com a enfermeira. Me contou que no dia anterior, quando a enfermeira a levou na cadeira de rodas para fazer alguns exames, correu com ela pelo corredor do hospital, que estava vazio, e que ela tinha achado aquilo muito divertido. Conversamos, esperamos, ela deitou com a cabeça para o lado dos pés da cama, entediada, não queria mais esperar. Perguntava porque não vinham buscar ela logo, levar para o bloco de uma vez. Até que ela pegou no sono. Esperamos. Até que uma outra enfermeira veio buscá-la. 

Acompanhamos elas até a entrada do bloco cirúrgico, meu irmão foi dar um beijo nela e desejar boa sorte. Na porta, eu estava logo atrás dela, então ela disse: "E a Eka, não vai vir me dar um beijo?" - Bem eu estava logo atrás dela, indo fazer isso mesmo, respondi: "Tô aqui!", e dei um beijo na cabeça dela. Ela foi levada pra dentro do bloco cirúrgico, e nós nos sentamos nas cadeiras, no corredor, esperando.

A cirurgia durou o que, 4? 5? 6 horas? Não me lembro mais. Lembro que eu estava tranquila, ia dar tudo certo, e ela ficaria bem. Estava cheia de esperanças. Estava confiante. Ela me transmitiu essa confiança. Passei o tempo todo lendo um livro aleatório na sala de espera, para me distrair. Meu pai e meu irmão não liam nada, não faziam nada, apenas esperavam. Até que os médicos passaram com ela em uma maca, em direção à UTI, e o cirurgião nos chamou para conversar conosco.

"A cirurgia ocorreu conforme o esperado", ele nos disse. "A cirurgia tem passos que devem ser seguidos em uma certa ordem, como um trem andando nos trilhos, e em nenhum momento o trem saiu fora dos trilhos, tudo ocorreu como deve ser." Essas foram as palavras dele. E continuou... "daqui pra frente, a recuperação só depende do organismo dela, o coração dela estava bem comprometido e nós fizemos tudo da melhor forma que era possível. Agora ela vai ficar assistida aqui na UTI, e quanto mais as horas forem passando, melhor será o prognóstico." - Ela ainda estava sedada, e assim permaneceria.

Pudemos vê-la na UTI. Meu pai entrou, depois eu. Meu irmão não teve coragem. Ela estava entubada, cheia de fios, e com edema generalizado. Não sei explicar o que eu senti ao vê-la naquelas condições. Não parecia a minha mãe, a mulher forte e alegre e risonha de sempre. Era um ser frágil, lutando pra sobreviver. Respirando por um tubo. Eu perguntei pra médica/enfermeira, sei lá, pra pessoa que estava cuidando dela na UTI, se iriam retirar aquele tubo dela quando ela acordasse. Aquele aparelho me assustava. Fazia o peito dela subir e descer mecanicamente, inflando como um balão. A moça disse que a ideia era essa, tirar ela do respirador assim que possível. Fiz um carinho nela e não consegui mais ficar lá dentro. 

Saindo da UTI, fomos orientados a ir pra casa. Nos passaram os horários de visita, garantiram que ela teria toda a assistência, e que entrariam em contato conosco para qualquer eventualidade. Fomos pra casa.

Só deu tempo de tomar um banho e comer alguma coisa. Ligaram do hospital, avisando que o quadro dela havia piorado, e que deveríamos ir pra lá imediatamente. Meu pai entrou em desespero, e eu tirei de dentro de mim uma força que eu não faço a minima ideia de onde veio. Disse pra ele parar de chorar, parar de ser pessimista, que ela ia ficar bem. Eu me recusava a acreditar em qualquer pensamento negativo. Eu me recusava a chorar. E fiz meu pai engolir o choro também. Liguei pro meu irmão, avisei pra ele ir pro hospital também, pegamos o carro, e não sei como é que chegamos lá. Passamos direto, fomos conduzidos por uma enfermeira que, enquanto nos levava até o local onde a mãe estava, nos atualizava da situação. A mãe teve uma sequência de paradas cardíacas, e os médicos a haviam reanimado diversas vezes. E era isso que eles estavam fazendo quando chegamos à porta da sala. Não pudemos entrar, obviamente. Eles a reanimaram inúmeras vezes, e o coração dela voltava, e parava. Voltava, e parava. Até que não voltou mais. 

Meu mundo caiu, e eu fiquei apática. Não consegui chorar, não consegui falar nada, apenas ficar ali, existindo naquele momento. Sentei no chão do corredor do hospital, encolhi as pernas e fiquei encarando os meus joelhos por não sei quanto tempo. Ouvia meu pai chorar e não sabia o que fazer. Ouvia ele telefonar desesperado para todas as pessoas que conseguiu lembrar, em busca de alguma resposta, algum suporte, não sei. Eu fiquei um bom tempo encarando os meus joelhos, até que não consegui mais ficar parada. Levantei, e comecei a andar de um lado pro outro, até o fim do corredor, e voltava, e ia de novo, e voltava, ainda sem conseguir chorar. Não sabia o que pensar, não sabia como agir, não sabia de mais nada! Eu não estava preparada para aquilo, ia dar tudo certo, não ia? A mãe ia ficar bem, não ia?

Encontrei uma porta aberta, e pedi pra enfermeira que estava lá se ela conseguia pra mim um copo d'água. Tomei. Os médicos deixaram a gente entrar na sala em que a mãe estava. Ela estava com a mesma aparência de quando eu a vi mais cedo, na UTI. Tinha permanecido sedada, até então. Dei um beijo na testa dela, fiz um carinho, e só consegui pensar: "Vai em paz, mãe... a gente vai ficar bem."

Quando eu saí de dentro do hospital, vi o céu, as estrelas, e aquele vento gelado batendo na minha cara, eu desabei. E chorei tudo que não tinha chorado até então. Eu não consegui me envolver na burocracia que veio depois disso, não consegui fazer mais nada, apenas acompanhei a minha família no processo, apática e sem ação. Lembro que fomos até uma funerária, onde eu sentei em uma poltrona distante e deixei que todos resolvessem coisas nas quais eu não queria me envolver. Depois fomos pra casa. Já era umas 2h da manhã. O pai me pediu ajuda para escolher uma roupa bonita, que ela gostasse. Abri o guarda-roupas, tirei algumas peças, combinei uma blusa, uma calça... peguei um porta-retrato com uma foto onde estávamos nós 4, pai, mãe, irmão e eu. Levei comigo no carro. Voltamos pra funerária. Voltamos pra casa. Ninguém dormiu. Ainda de madrugada, fomos até a capela onde o pessoal da funerária havia organizado o velório, e lá eu permaneci por horas. 

Durante várias horas, ficamos apenas nós naquela capela. E aí conversamos, e aí refletimos. E eu percebi que seria egoísmo demais da minha parte, querer que minha mãe continuasse viva naquele corpo doente e limitado, só pra querer ela perto de mim. Eu só queria que ela ficasse aqui comigo, se fosse pra ela estar saudável, ativa, feliz, sem dor, sem problemas. E agora ela estaria assim, estaria livre de todos aqueles problemas. E se pra isso eu tivesse que aprender a lidar com a ausência dela, era isso que eu faria. 

Eu e minha família nos unimos mais do que nunca naquele dia. Quando finalmente amanheceu, as pessoas começaram a chegar. Tanta gente, gente que eu nem conhecia. Vou colar aqui uma coisa que escrevi no meu facebook, depois que tudo acabou, sobre como eu me senti: 

"Obrigada a todas as pessoas lindas que tornaram esse dia suportável. Obrigada pelo carinho. Obrigada por fazerem cada um de nós se sentir muito amado e especial, e por ajudarem a tornar tudo lindo, dentro do possível.
Família que ri e chora unida, permanece unida! Ficaremos bem.
Eu me senti tão amada ontem gente. Tão amada! Eu vi amigas de todas as fases da minha vida, reunidas a minha volta, todas juntas ali comigo. Amigas que eu não via anos! Que saudade! No meio desse buraco de dor sem tamanho, em uma fagulha lá dentro eu me senti tão feliz por ter vocês! Me senti acolhida por cada abraço! E achei tão lindo que no meio de tantas e tantas lágrimas, no meio da exaustão de quase 40 horas sem dormir, conseguimos rir e falar besteira, como sempre fui, como era com a minha mãe. Se tem uma coisa que eu aprendi com ela nessa vida, é a levar a vida com bom humor. Mesmo quando parece impossível! É uma característica que já ouvi falarem que eu tenho, e que veio muito dela. Sempre sorridente. See the bright side. Always.
A saudade que sentimos é só mais uma prova do quanto a minha mãe foi um ser humano especial, que contagiava todas as pessoas que tiveram o prazer de conhecê-la, com palavras de carinho, com afeto. O coração físico pode até ter sido frágil, mas o espiritual era/é maravilhoso, enorme, gentil e solidário. Eu tenho muita sorte de ter convivido ao lado dela toda minha vida. Aprendi muito! Agora é hora de andar com as próprias pernas, mas eu sei que ela vai estar sempre olhando por mim. Mãe, eu ainda vou te dar muito orgulho! Te amo."


Achei irônico, vinha fazendo uns dias bem bonitos, de sol, e nesse dia choveu. Como se o céu também chorasse. Mas no fim do dia, o tempo abriu e o sol voltou. É meio poético, né? Como o mundo pode ser... é só saber observar.

Passei toda a semana seguinte em Caxias, com a minha família. Não fui pra aula. Não perdi nada importante. Mas na semana seguinte, tive que retornar pra Porto Alegre, o semestre estava no fim, e eu não podia abandonar tudo agora. E isso sem dúvida não daria orgulho nenhum pra minha mãe, que sempre se orgulhou dos meus estudos. 

Passando um mês, publiquei o seguinte:


"Mãezinha linda, hoje faz um mês que tu partiu. Hoje a saudade tá batendo ainda mais forte. Mas eu quero que tu saiba que, de todo coração, eu espero que onde quer que tu esteja, estejas feliz. E saiba que a gente te ama muito e não espera outra coisa pra ti. É difícil conviver com a tua ausência, é difícil chegar em casa e não ser recebida pelo teu abraço, pelo teu olhar carinhoso e pelo teu sorriso, que sempre irradiava tanto amor quando me via. Mas estou certa de que tu vai guiar os meus passos, e vai me contagiar com teu amor de mãe por toda minha vida. E sempre que eu der uma risada gostosa, vou lembrar da tua, e de como tu ia rir também se eu te contasse. E sempre que eu me sentir triste, vou lembrar do teu abraço, e de como ele tinha o poder de tirar todas as mágoas de dentro de mim. E sempre que eu estiver em dúvida, vou pensar no que tu me diria. E sempre que eu estiver com saudades de ti, vou pensar em ti com todo meu amor, pra que daí tu receba um pouco dessa energia positiva que vem de mim. Eu não fico triste ao lembrar de ti não, eu fico feliz por ter tido a oportunidade de conviver com uma pessoa tão incrível, por ter tantas memórias boas e alegres. Eu vou ficar cada vez mais forte, tu vai ver só. Amo tu, tá?"

Voltei pra Porto Alegre, estudei como uma monstra, vindo pra Caxias todos os fins de semana ficar com meu pai. Fui aprovada sem exame em todas as disciplinas, às custas de várias madrugadas em claro, e umas olheiras. Mas finalmente estou de férias. E voltei pra Caxias, onde ficarei até o ano letivo recomeçar, e eu conseguir pensar no que é que vou fazer. Não vou abandonar a faculdade, isso não é uma opção. Eu só preciso de mais força do que nunca pra seguir em frente. 



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